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A exposição de menores à violência pode ser património nacional?

https://basta.pt/basta-de-touradas-contesta-candidatura-do-colete-encarnado-a-patrimonio-cultural-imaterial/

A Câmara Municipal de Vila Franca de Xira apresentou uma candidatura à Direção-Geral do Património Cultural com vista à inclusão das Festas do Colete Encarnado na lista de Património Cultural Imaterial. Na consulta pública do processo, um conjunto de 33 organizações não-governamentais emitiu um parecer negativo à candidatura, argumentando que esta não satisfaz os requisitos para inclusão das Festas do Colete Encarnado na referida lista.

Na dupla condição de cidadão residente no concelho de Vila Franca de Xira e de eleito do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal, pretendo manifestar a minha inteira concordância com este parecer que reuniu o consenso de um número amplo de organizações da sociedade civil.

A 27 de setembro de 2019, um relatório do Comité dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) apontou o dedo à exposição de crianças e jovens portugueses à violência em espetáculos tauromáquicos, considerando-a uma violação clara de vários artigos da Convenção dos Direitos da Criança. O mesmo relatório:

“recomenda que o Estado Parte estabeleça a idade mínima para participação e assistência em touradas e largadas de touros, inclusive em escolas de toureio, em 18 anos, sem exceção, e sensibilize os funcionários do Estado, a imprensa e a população em geral sobre efeitos negativos nas crianças, inclusive como espectadores, da violência associada às touradas e largadas”.

A candidatura desenvolvida pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira optou por omitir esta realidade que, contudo, é do conhecimento de todos aqueles que, ano após ano, são testemunhas da presença e participação ativa de crianças e jovens nas corridas de touros.

A exposição de menores à violência intrínseca dos espetáculos tauromáquicos não é acidental: existe uma política municipal que deliberadamente convoca os menores para a participação na violência tauromáquica, confirmada pelo apoio municipal de 60.000€ anuais concedido à Escola de Toureio José Falcão. A Câmara Municipal de Vila Franca de Xira falha na defesa do superior interesse das crianças quando permite e incentiva que estas tomem parte num evento que exalta e glorifica a violência.

Há um modelo de sociedade e de interação entre seres humanos que importa debater. Não se constrói uma sociedade mais pacífica e mais dialogante quando se ensina às crianças que a violência é um meio legítimo de satisfação de objetivos pessoais. A banalização da violência traduz-se na perpetuação da violência.

Em 2022, as Festas do Colete Encarnado causaram 45 feridos, entre os quais 1 ferido grave. Este ano, o número de feridos ascendeu aos 79, novamente com um ferido grave a registar. 22 pessoas foram assistidas no hospital em consequência da participação nas largadas de touros. Muitos dirão que estes números são normais e que resultam da decisão individual de quem escolhe expor-se ao perigo, mas o que neles se vê é a normalização da violência numa festa organizada e financiada por uma Câmara Municipal.

Em Portugal, anualmente, a tauromaquia beneficia de 19 milhões de euros de apoios e subsídios públicos. Em Vila Franca de Xira, é fácil identificar os 60.000€ que custa a Escola de Toureio José Falcão, mas o que não escrutinável pela Assembleia Municipal são os gastos com aluguer de touros, o valor gasto em compra de bilhetes ou a redução de taxas e licenças a agentes ligados à cultura taurina. Ainda em matéria de financiamento municipal à tauromaquia, recentemente foi tornada pública a intenção de o Município constituir um Museu da Tauromaquia e de apoiar a criação do Museu dos Forcados, ambos na cidade de Vila Franca de Xira, quando por todo o concelho se sente a falta de equipamentos adequados às artes cénicas ou a inconstância de oferta cultural destinada a um público com interesses e preferências diversos.

A lei portuguesa tem avançado, de forma consistente, no sentido do reconhecimento dos direitos dos animais e da criminalização dos maus tratos contra os mesmos. Contudo, os requisitos para a inclusão na lista de Património Cultural Imaterial não mencionam, ainda, a necessidade de salvaguarda destes valores civilizacionais. Não obstante, a exposição de crianças e jovens à violência e a perigos reais que os colocam em risco é uma matéria a que a Direção-Geral do Património Cultural não pode ficar indiferente.

O caráter popular das Festas do Colete Encarnado merece ser assinalado. Elogio o encontro entre as diferentes faces do território; elogio o momento de socialização, de discussão de ideias e de partilha do espaço público que faz desta uma festa única. No entanto, os novos tempos exigem que se introduza segurança, saúde, ética, responsabilidade social e respeito pelos animais nesta celebração. A fronteira entre tradição e tradicionalismo tem de ser marcada. As tradições reinventam-se, acompanhando a evolução dos povos: caso contrário, todos perdemos.

 

João Fernandes

Eleito na Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira