DIA CLARO
Discurso na Sessão Solene da Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira
Comemorativa do 44º aniversário do 25 de Abril de 1974
Fábrica das Palavras, Vila Franca de Xira, 25.04.2018
Começo por cumprimentar todos os presentes, cidadãos e cidadãs que aqui se reunem para celebrar este dia. Saúdo o senhor Presidente da Câmara Municipal, o senhor Presidente da Assembleia Municipal, os vereadores e as vereadoras, os eleitos e as eleitas de órgãos autárquicos, os e as representantes de instituições e organizações do nosso concelho e da comunicação social, os trabalhadores e as trabalhadoras dos serviços que nos apoiam.
Saúdo ainda o lugar em que celebramos a Liberdade, a nossa maior biblioteca municipal, a Fábrica das Palavras, muito perto da estátua que recorda Álvaro Guerra, um dos protagonistas civis do 25 de Abril de 1974, e um dos autores que as nossas bibliotecas nos oferecem para conversar, lendo o que escreveram, filmaram, desenharam, cantaram. Um país faz-se de homens, de mulheres e de livros, e lugares como este fabricam diariamente estes encontros. Neste Cais de Vila Franca, onde cresci e aprendi tanto, com meninos e meninas, homens e mulheres de grande valor, e a quem também gostaria de prestar homenagem. [1]
Quantos nomes há numa revolução? Muitos. Nomes de gente, mas também palavras que dão voz ao que pensamos e sentimos. Andei a pensar no que dizer-vos hoje, nesta celebração, e socorri-me de alguns amigos mais jovens, que nem eram nascidos há 44 anos, no 25 de Abril de 1974. Emprestaram-me palavras: igualdade, esperança, futuro, turismo, habitação, liberdade, responsabilidade, possibilidade, força, crítica, ruptura, exploração, justiça...
E trouxeram-me imagens, videos, canções.
“Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.” - cantava o Francisco Fanhais, muito antes de 1974, a partir de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresenque, nesses anos, sabíamos de cor. Procurem no Youtube - o registo da canção, refeito em 2008, no Coliseu, recomenda-se. Contra a fome, contra a guerra, continuamos a precisar do alento da Cantata da Paz.
Hoje mesmo, de manhã, li um comentário de um amigo nas redes sociais que gostava de partilhar: “Eu, que vivi o 25 de Abril, digo-vos que está a fazer falta mais um.”
A melhor homenagem ao 25 de Abril de 1974 é resistir à indiferença, não fazer a vontade ao terror. Escutar, abrir as janelas e ler o sentido das palavras e dos silêncios da gente.
E vemos, ouvimos e lemos muita coisa bela, e muita coisa muito menos bela. Nos últimos meses, multidões percorrem as ruas de Lisboa admirando a sua beleza, é verdade – e no entanto, cresce a angústia de famílias e cidadãos a ficar sem casa, sem modo de vida, sem vizinhos. Não sabiam? Pois, olhem, escutem, leiam.[2]
Todos os dias Abril nos lembra uma alegria, todos os dias nos sopra uma palavra de alerta. A liberdade e a democracia são jardins exigentes de cuidados permanentes. A desigualdade é uma erva daninha que ameaça estes jardins, e temos deixado que essa erva medre. O que fazer? Combatê-la, agora e para o futuro, usar todos os meios para isso.
Abril em português rima, desde 1974, com esperança. Mas tem de ser a sério... Se deixarmos estas rimas na gaveta, é a confiança do povo que abafamos, dando força ao medo, que nunca estará satisfeito. Não se compra a paz, nem a dignidade – lutar pela democracia não é coisa de moedas, é urgência de homens e mulheres vivos, livres e sãos. Nos últimos meses, há muitas imagens de Portugal como terra de luz e sorrisos, e é verdade – e, no entanto, conquistas da democracia como o Serviço Nacional de Saúde mobilizam vozes de Norte a Sul para o defender, não pela bolsa, mas pela vida dos cidadãos e das cidadãs. [3] No próximo dia 1 de Maio, mais uma vez, os trabalhadores e as trabalhadoras marcarão nas ruas quantas lutas se travam. 44 anos depois da hora em que os militares iniciaram o derrube da ditadura, muitas se continuam a travar, pelos direitos humanos, pelos direitos sociais – Abril todos os meses, do princípio ao fim.
O Rio Tejo corre diariamente, inundando a nossa vida de graça e beleza. E no entanto, as políticas ambientais e de gestão do território estão longe de nos tranquilizar quanto ao futuro – lamentar catástrofes não chega, precisamos de coragem para impedir que os interesses de curto prazo comprometam o futuro da Terra que amamos e dos seres que são seus.
Não repararam? Pois, olhem, escutem, leiam.
A democracia e a liberdade são ainda bens escassos no Planeta, e nunca se poderão dar por adquiridos. A solidariedade com quem as defende é, como sempre, essencial ao futuro que queremos. A força de que precisamos aumenta com a partilha e a fraternidade. Precisa de gente nova, com acesso a educação e a cultura. [4]
Precisa de escolhas claras e compromisso. No dia 28 de Maio de 1974, no Palácio Foz, no mesmo local onde estivera a Secretaria de Estado da Informação e Turismo, e, antes, o SNI, instrumento de propaganda do regime do Estado Novo, o Movimento Democrático de Artistas Plásticos organizou um evento. Marcelino Vespeira deu o mote: “a arte fascista faz mal à vista”. Vemos, mas é preciso saber ver, ver com agudeza, distinguir os vultos e as sombras. É preciso apurar a vista.
E é preciso agir coletivamente, usar a crítica como coisa natural e diária, estimá-la, não recear rupturas quando é preciso e útil, e, na diferença e no debate, crescer e fortalecer a Democracia. Isso também aprendemos com Abril. Socorro-me mais uma vez da arte. Há alguns anos, um projeto inspirado numa artista brasileira contemporânea, Lygia Pape, fez acontecer no Museu Rainha Sofia, em Madrid, uma performanceque não me sai da cabeça. Deixem-me tentar contar-vos como foi. Um conjunto de pessoas posicionadas em grelha a uma distância igual entre si levantam um enorme lençol e andam para a frente. Cada um é fundamental para que a performance aconteça. Os ritmos de deslocação têm de estar combinados, e nunca se rompe o lençol, que ondula, umas vezes mais enrugado, outras mais esticado.
O 25 de Abril deu função à comunidade, reconheceu o papel de cada um para a construção de sentido. Todos somos fundamentais e a todos e a todas nós é exigido esse papel. Grândola Vila Morena, canção que tornámos símbolo do povo que mais ordena, da fraternidade, continua a lembrar-nos esse desafio e esse amor.
Há 44 anos, a rádio transmitia, de madrugada:
“Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas.As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas nas quais se devem conservar com a máxima calma.”
Então como hoje, começámos por aguardar o amanhecer. Então, como hoje, agradeçamos ao Movimento das Forças Armadas e tomemos as ruas, pacificamente, mas sem timidez, pela justiça. As ruas, as assembleias, todos os lugares onde podemos contribuir para transformar a vida. Com brio e vontade, o melhor que conseguirmos. Atentos ao País, e a todas as suas gentes, e ao Mundo. Apurando o olhar, a escuta, a leitura e o pensamento crítico, mantendo o coração limpo, a tolerância, o amor à diversidade, a compaixão. Como comunidade, sem tropeçarmos no que enruga e enrola o lençol, por erros, interesses ou atrasos, e sem o deixarmos romper, por avidez, desprezo ou desconfiança.
Um dia, todos partiremos. Dizia Miguel Portas, há pouco mais de seis anos: podemos partir de cara lavada ou de cara pintada. Como ele, gostaria de partir de cara lavada.
Voltemos às cantigas, afinemos as gargantas. A cantiga é uma arma, cantava e canta o José Mário Branco. Tudo depende da bala e da pontaria, tudo depende da raiva e da alegria...
Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos, nem queremos, ignorar.
Obrigada, Capitães de Abril. Obrigada, Salgueiro Maia. Obrigada a todos e a todas que tornaram possível a queda do brutal regime fascista. Agora, falta-nos fazer nova revolução para recuperar o que foi roubado pelos que capturam a liberdade, a justiça, a saúde, a educação, a cultura, o pão, a paz. Eles nunca se cansam, nós nunca iremos ao tapete. Estamos, às vezes, encostados às cordas, mas iremos sair. Nenhum sistema imposto por gente indecente é à prova da capacidade criativa dos homens e das mulheres decentes para o derrubar.
Ditaduras, nunca. Nem mais. Aqui, e em toda a parte.
Vinte e cinco de Abril, sempre.
VIVA VILA FRANCA DE XIRA
VIVA PORTUGAL
[1] Desafio presente: requalificar e dinamizar as zonas históricas de Alhandra a Vila Franca de Xira, passando pelas antigas instalações da Cimianto e das Escolas da Armada, e pelo Passeio Ribeirinho, numa visão que abranja toda esta parte do território municipal, ganhando a oportunidade para apostas de desenvolvimento diferente e maior qualidade de vida.
[2] Desafio do presente: tomar medidas sobre habitação social e arrendamento, entre outras, que assegurem Vila Franca de Xira como um território em que o direito à habitação não é só para ricos ou endividados até aos cabelos aos bancos.
[3] Desafio do presente: exigência de qualidade nos serviços de saúde no concelho, numa perspetiva integrada ; antigo Hospital de Vila Franca de Xira – articular forças para que se trave a sua destruição, e se recupere como uma unidade de cuidados continuados, podendo ter ainda outras valências de saúde que tanta falta nos fazem, e que nem o novo Hospital nem a rede social atual contemplam.
[4] Desafio do presente: intervenção crítica no processo de descentralização – sem regionalização! - que vem sendo anunciado, avaliando cada medida não apenas pelo que se anuncia como intenção, mas também pelas suas consequências reais e antecipáveis na qualidade de vida das populações, na equidade e no modelo de desenvolvimento e de sociedade que se defende, no papel das autarquias e na responsabilidade do Estado perante todo o território e todas as comunidades que nele vivem.